terça-feira, 7 de outubro de 2014

Gálatas 6:14-18


                                           Gálatas 6:14-18
                                                     por
                                            João Calvino
[vv. 14-18]

Mas longe de mim gloriar-me senão na cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, pelo qual o mundo está crucificado
para mim e eu para o mundo. Pois em Cristo nem a
circuncisão nem a incircuncisão é coisa alguma, mas o
ser nova criatura. E a todos quantos andarem conforme
esta regra, paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre
o Israel de Deus. Quanto ao mais, que ninguém me
perturbe; porque trago em meu corpo as marcas do
Senhor Jesus. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo
seja, irmãos, com o vosso espírito. Amém.

14. Mas longe de mim. Ele agora contrasta as tramas dos
falsos apóstolos com sua própria sinceridade, como se estivesse
dizendo: “Para não serem compelidos a levar a cruz, então negam
a cruz de Cristo, adquirem os aplausos dos homens com o preço
de vossa carne e terminam conduzindo-vos em triunfo. Meu
triunfo e minha glória, porém, se encontram na cruz do Filho de
Deus”. Se os gálatas não estivessem ainda destituídos de todo
aquele comum sentimento, porventura não deveriam ter detestado
aqueles a quem viam se refestelando a expensas deles?

Gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo é o
mesmo que gloriar-se no Cristo crucificado, ainda que algo mais
esteja implícito. Ele tem em mente a morte cheia de miséria e
ignomínia, a qual Deus mesmo amaldiçoou; a morte que os
homens contemplaram com aversão e vergonha; nessa morte, diz
ele, me gloriarei, porque nela eu encontro perfeita felicidade. Pois
onde o bem mais excelente existe, aí há glória. Mas, por que não
também em outros lugares? Ainda que a salvação seja revelada na
cruz de Cristo, onde fica sua ressurreição: Eis minha resposta: na
cruz está contida a totalidade da redenção e todas as suas partes,
mas a ressurreição de Cristo não nos afasta da cruz. E note-se
bem que ele abomina todas as outras formas de glória como não
sendo nada menos que uma terrível ofensa. Que Deus nos proteja
de tal praga; isso não passa de uma monstruosidade! Eis o
significado da frase que Paulo freqüentemente usa — de modo
algum!

Pelo qual o mundo. Como stauros (stauros) é masculino, o
pronome relativo pode, no grego, referir-se ou a Cristo ou à cruz.
Em minha opinião, contudo, é preferível que se refira à cruz.
Porque por meio dela, estritamente falando, morremos para o
mundo. Mas, o que significa 'o mundo'? Ele é indubitavelmente
contrastado com a nova criatura. Tudo quando se opõe ao reino
espiritual de Cristo é o mundo, visto que ele pertence ao velho
homem; ou, numa palavra, o mundo é, por assim dizer, o objeto e
o alvo do velho homem.

O mundo está crucificado para mim, diz Paulo. No mesmo
sentido, em outro lugar ele declara que considera todas as coisas
como esterco [Fp 3.8]. Crucificar o mundo é menosprezá-lo e
reduzi-lo a nada.
E ele adiciona o oposto: e eu para o mundo. Com essa
expressão ele quer dizer que o mundo era completamente sem
importância e deveras absolutamente nada, porque a nulidade
pertence aos mortos. De qualquer forma, ele quer dizer que, pela
mortificação do velho homem, havia renunciado o mundo. Alguns
o expõem assim: “Se o mundo me considera como amaldiçoado e
proscrito, eu considero o mundo condenado e maldito”. Isso, a
meu ver, parece ser um tanto estranho ao pensamento de Paulo,
porém deixo a decisão com os leitores.

15. Pois em Cristo Jesus. A razão por que ele está crucificado
para o mundo e o mundo para ele é que, em Cristo, em quem o
apóstolo está enxertado, somente uma nova criatura é de algum
valor. Tudo mais deve ser descartado; não, perecido! Estou me
referindo às coisas que obstruem a renovação procedente do
Espírito. Isso é o que ele diz em 2 Coríntios: “Se alguém está em
Cristo, que ele seja uma nova criatura” [2 Coríntios 5.17]. Ou seja,
se alguém deseja ser considerado dentro do reino de Cristo, que
ele seja reformado pelo Espírito de Deus; que não mais viva para si
mesmo nem para o mundo, senão que se erga para uma nova
vida. A razão por que ele conclui que nem circuncisão nem
incircuncisão é de algum valor já foi mencionada. A verdade do
evangelho absorve e desfaz todas as sombras da lei.

16. E a todos quantos andarem conforme esta regra. “Que
todos quantos sustentam esta regra”, diz ele, “desfrutam de
prosperidade e felicidade!” Isso equivale tanto como uma oração
por eles quanto como um sinal de aprovação. Sua intenção,
portanto, é que todos aqueles que ensinam esta doutrina são
dignos de amor e beneplácito; e, por outro lado, os que a
abandonam não são dignos de ser ouvidos. Ele sua a palavra regra
para expressar o sólido e contínuo curso que todos os piedosos
ministros do evangelho devem seguir. Pois como os arquitetos, ao
erigir edifícios elaboram um plano, para que todas as partes se
harmonizem em perfeita proporção e simetria, assim o apóstolo
confia aos ministros da Palavra um cânon por meio do qual
pudessem edificar a Igreja adequada e ordeiramente.

Esse lugar deve gerar profundo zelo aos fiéis e honestos mestres
e a todos quantos se permitem conformar a essa regra, pois nela
ouvem Deus abençoando-os pelos lábios de Paulo. Não carecemos
de recear os trovões do papa, se Deus nos promete do céu paz e
misericórdia. O verbo andar, aqui, pode aplicar-se tanto ao
ministro quanto ao povo, ainda que sua referência seja
primordialmente aos ministros. O tempo futuro do verbo é usado
para expressar perseverança.

E sobre o Israel de Deus. Esta cláusula se constitui num motejo
indireto à vã ostentação dos falsos apóstolos, os quais alegavam
ser os descendentes de Abraão segundo a carne. Ele, pois, produz
um duplo Israel: um, uma simulação e visível somente aos homens;
o outro, visível somente a Deus. A circuncisão era um sinal aos
olhos humanos; a regeneração, porém, é a verdade aos olhos de
Deus. Numa palavra, ele agora os chama o Israel de Deus, a quem
anteriormente se chamavam filhos de Abraão pela fé, e portanto se
incluíam todos os crentes, quer gentios, quer judeus, que foram
unidos numa mesma Igreja. Em contrapartida, o Israel segundo a
carne só pode reivindicar o nome e a raça, e disso ele trata em
Romanos 9.

17. Que ninguém me perturbe. Ele agora fala com voz de
autoridade, com o fim de refrear seus adversários, pois manifesta
todo o direito de seu poder superior: “Que eles parem de obstruir
o curso de minha pregação”. Estava pronto, por amor a toda a
Igreja, a solucionar as dificuldades, mas não será obstruído pela
oposição.

Perturbar é opor-se com o fim de subverter o progresso de
alguma obra.

Quanto ao mais, ou seja, todas as coisas que se acham além da
nova criatura. Eis sua intenção: “Esta única coisa é bastante para
mim. Outras questões são sem importância e não me interessam.
Que ninguém me aborreça com elas”. E assim ele se coloca acima
de todos os homens e não dá a ninguém o direito de assaltar seu
ministério. Literalmente, significa: “quanto ao resto do que ficou”.
Em minha opinião, Erasmo estava errado ao referi-lo ao tempo.

Porque trago em meu corpo as marcas. Ele mostra que a
ousadia de sua autoridade repousava nas marcas de Cristo, as
quais ele levava em seu corpo. E que marcas eram essas? Prisões,
cadeias, açoites, calamidades, apedrejamentos e muitos tipos de
maltratos que ele sofreu em decorrência do testemunho do
evangelho. Pois assim como as guerras terrenas têm suas
condecorações com as quais os generais honram a bravura de um
soldado, também Cristo, nosso General, tem suas marcas
pessoais, das quais ele faz bom uso para condecorar e honrar a
alguns de seus seguidores. Essas marcas, porém, são muito
diferentes das outras; pois elas contêm a natureza da cruz, e aos
olhos do mundo não passam de ignomínia. Isso é sugerido pela
palavra 'marcas', pois literalmente significam ferroadas, as marcas
com que os escravos estrangeiros, ou fugitivos, ou malfeitores,
eram marcados. Paulo, portanto, fala mui estritamente quando
alega ser distinguido por essas marcas com as quais Cristo
costumava honrar seus mais distintos soldados. Aos olhos do
mundo, essas marcas eram vergonhosas e símbolo de desgraça;
mas diante de Deus e dos anjos elas excedem a todas as honras
do mundo.

18. A graça de Cristo seja com o vosso espírito. Ele ora não
para que a graça fosse derramada sobre eles gratuitamente, mas
para que pudessem ter em sua mente um sentimento correto
sobre ela. Realmente, ela só é usufruída por nós quando atinge o
nosso espírito. Devemos, pois, pedir a Deus que prepare nossa
alma para ser uma habitação de sua graça. Amém.


Fonte: Extraído do comentário de Gálatas de João Calvino,

publicado pela Editora Paracletos, páginas 188-192.

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